Processos judiciais envolvendo a lei de proteção de dados pessoais na área trabalhista passaram a ser muito frequentes, e muitas são as nuances debatidas, não apenas com foco na proteção dos dados do próprio trabalhador enquanto titular de seus dados, como também na proteção de dados de terceiros não envolvidos na relação entre as partes do processo.
Isto se deve muito em razão da Lei Geral de Proteção de Dados ser uma lei promulgada recentemente e, diante da novidade, ainda é muito questionada sobre a quem se aplica, como lidar com as situações corriqueiras, como utilizar provas que envolvem dados pessoais, ou mesmo se há realmente necessidade de implementação dentro da empresa e quais prejuízos podem ocorrer.
Empresas de menor porte, por exemplo, acreditam que, como não possuem sistemas internos de controle de estoque e/ou de cadastros de clientes, não haveria motivos para mudanças em suas rotinas.
Mas não é bem assim, as diretrizes contidas na LGPD são totalmente aplicáveis nas relações de trabalho, seja qual for o porte da empresa, em razão da necessidade de proteger os dados de empregados, prestadores de serviços, candidatos, aprendizes, estagiários, sócios, clientes e até de outras figuras aqui não relacionadas, que fornecem dados pessoais no cotidiano da atividade empresarial.
Isto é, no fluxo empresarial rotineiro, é necessária uma sucessão de atos pautada em documentos que, muitas vezes, contêm informações pessoais, motivo pelo qual seu armazenamento e segurança merecem grande atenção.
Tanto é assim que a proteção de dados, antes sob o guarda-chuva dos direitos à dignidade e à intimidade, galgou, no ano de 2022, ao status explícito de direito fundamental no âmbito da Constituição Federal:
Art. 5º, inciso LXXIX, CF. É assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais”. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 115, de 2022).
É crucial que tanto empregados quanto empregadores compreendam que os dados pessoais por eles tratados não são disponíveis, muito menos desprovidos de proteção jurídica. Isso é uma mudança cultural, não apenas uma formalidade inserida dentro da organização.
E as consequências da relação da LGPD nas práticas trabalhistas internas é um crescente sem-número de ações judiciais que versam sobre o assunto, seja pelo desrespeito à proteção dos dados do próprio empregado, como também pela utilização de dados pessoais de terceiros inseridos em um processo judicial como meio de prova.
No aspecto, cite-se o exemplo do pedido de equiparação salarial, em que se utiliza dados pessoais de terceiros em um processo judicial, ou nos pedidos de comissões não pagas diante de um relatório de vendas, que podem trazer dados de clientes aos autos.
Resta claro, portanto, que as relações trabalhistas precisam ajustar suas condutas às normas trazidas pela LGPD, tanto para os contratos de emprego em curso, como para os novos contratos e até mesmo em relação aos contratos já encerrados, que podem ser discutidos judicialmente.
Talvez, a maioria não se interesse tanto em entender a construção doutrinária que envolve a proteção de dados pessoais, em conhecer todos os conceitos e princípios contidos na LGPD, muito menos em como se deu a evolução desta matéria no país.
No entanto, interessará a todos os empresários saber que, se não agirem em conformidade em quaisquer dessas situações, além de poderem sofrer sanções administrativas impostas pela ANPD, poderão ser condenados judicialmente com a ruptura do contrato de emprego, decorrente de sua conduta, devendo pagar todas as verbas rescisórias típicas de dispensa sem justa causa, além de eventual ressarcimento de danos morais, de acordo com o disposto no art. 483, alínea “d”, do artigo 483 da CLT: a chamada rescisão indireta.
Art. 483. O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando:
(…)
d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato
Analisando decisões em processos que envolvem o desrespeito à LGPD nas relações trabalhistas, temos situações frequentes de “descuido” com dados pessoais de trabalhadores durante a relação de trabalho.
Violação da LGPD por parte do empregador:
Para um melhor entendimento de como o empregador pode violar as normas de proteção de dados, temos a sentença proferida na Vara do Trabalho de Ponte Nova/MG, no processo de nº 0010337-16.2020.5.03.0074, em que foi declarada a rescisão indireta do contrato de emprego porque a empresa informou o número pessoal de celular da ex-empregada no seu site, como sendo o contato no qual os clientes deveriam ligar ou mandar mensagem para efetuar compras de produtos da loja na época de pico da pandemia e que o estabelecimento encontrava-se fechado.
A juíza entendeu que a publicização do número do telefone celular da autora, na página virtual da ré, uma rede alimentícia nacionalmente conhecida, desrespeitou a privacidade e a intimidade da empregada e não observou as normas da LGPD.
Ainda, salientou a julgadora que, mesmo com o consentimento da empregada para a ré tornar público seu número de telefone pessoal, a trabalhadora é parte hipossuficiente da relação de emprego, não podendo consentir, portanto, de forma livre como preceitua a LGPD. O caso demonstraria abuso do poder empregatício, pois o empregador, valendo-se de sua posição de poder na relação laboral, tratou dado pessoal da empregada sem observar os limites legais impostos pela Constituição Federal e pela LGPD.
Outro episódio de desrespeito à LGPD por parte do empregador ocorreu na região de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo. A Justiça condenou uma empresa a indenizar um funcionário que constava em uma lista de pessoas que seriam demitidas. A relação foi exposta em um grupo de WhatsApp do qual faziam parte vários trabalhadores.
Além do nome, constavam informações sobre a quantidade de horas extras trabalhadas por cada funcionário, que foram armazenadas em bancos de horas e deveriam ser usufruídas antes do encerramento do contrato.
No caso, o juiz entendeu que houve violação à LGPD, uma vez que os dados interessam apenas ao trabalhador e ao empregador: “Logo, sua exposição de maneira indiscriminada viola a privacidade do empregado, acarretando em comparações e até mesmo discriminações, causando ao trabalhador dano moral, que encontra disposição expressa no artigo 42 da LGPD”, afirmou, na sentença, o juiz Rodrigo Penha Machado (processo nº 0010145-28.2020.5.15.0146)
Estes são apenas alguns exemplos de como a LGPD pode incidir nas relações trabalhistas, e serem objeto de pedido expresso em processos judiciais.
Violação da LGPD por parte do trabalhador:
Por outro lado, há também episódios no Judiciário Trabalhista de afronta à Lei de Proteção de Dados ocorridos não em face do empregado, mas justamente por parte dos colaboradores.
A título de exemplo, um caso de grande disseminação na mídia foi obtido em sentença proferida na 81ª Vara do Trabalho de São Paulo/SP em que um enfermeiro teve o pedido de rescisão indireta do contrato de trabalho prejudicado justamente por ter juntado provas aos autos que violam a Lei.
Na ação, o ex-empregado alegava que a empresa praticou diversas faltas e descumpriu obrigações. Dentre as situações relatadas estão a exigência de dobrar plantões, cuidar de pacientes em número superior ao determinado pelo Conselho de Enfermagem e efetuar pagamentos “por fora”. Com o intuito de provar alguns fatos, o profissional juntou planilhas do Sistema de Gerenciamento de Internação.
No entanto, o processo sofreu uma reviravolta. Em defesa, o hospital argumentou que, ao tomar conhecimento do processo, constatou que o autor “cometeu falta gravíssima ao apropriar-se indevidamente de documentos confidenciais“, aos quais ele só teve acesso em razão do cargo que exercia.
Em vista disso, a instituição fez um pedido liminar para a proteção de dados e os documentos foram excluídos dos autos. Diante desse fato, a empresa requereu a conversão da rescisão contratual em dispensa por justa causa, pela falta grave do ex-empregado no deslinde do processo.
A análise da juíza considerou que “o autor violou a intimidade e a privacidade de terceiros, pessoas naturais clientes da reclamada, e infringiu a Lei Geral de Proteção de Dados, utilizando dados sensíveis de forma ilícita. Ainda, fez com que a empresa infringisse a LGPD, pois esta era a responsável pela guarda dos dados sensíveis de seus clientes. Por fim, o reclamante descumpriu norma expressa da reclamada, da qual o reclamante foi devidamente cientificado”.
Com isso, o pedido de rescisão indireta do trabalhador foi julgado improcedente e ele foi responsabilizado pela falta praticada, sendo punido com a dispensa por justa causa.
Antes de se utilizar documentos que possuam dados pessoais como meio de prova, a análise acerca da possibilidade deve ser feita com extremo cuidado e parcimônia. Com base na LGPD, a Justiça do Trabalho já tem impedido compartilhamento de ferramentas como a de geolocalização de empregado para verificação da existência de horas extras.
Empregadores, inclusive, têm pedido inclusive dados de aplicativos instalados em celulares, como o Google, Facebook, Twitter, para comprovar se o empregado estava mesmo trabalhando nas horas exigidas, o que tem sido negado pelos Juízes, justificando a negativa em função do respeito à privacidade do trabalhador.
Como está sendo conduzida a LGPD nos processos trabalhistas:
Seja qual modalidade for, o olhar dos Magistrados já está caminhando no sentido de que a LGPD é imperativa e deve ser observada independente da circunstância que se pretendeu validar para justificar sua utilização.
O fato é que a Justiça do Trabalho, assim como todo o Judiciário, está diante de um novo fenômeno jurídico-social e, portanto, será importante e necessário acompanhar a formação da jurisprudência no que tange à proteção de dados pessoais, principalmente à medida que as discussões atingirem as instâncias superiores, nos Tribunais Regionais do Trabalho e no Tribunal Superior do Trabalho.
É fato, no entanto, que nos processos deve-se ter cuidados com dados pessoais, seja através da anexação nos autos de documentos de identificação, monitoramento de correspondências eletrônicas, mensagens trocadas em aplicativos de comunicação, as imagens capturadas no local de trabalho, os registros de chamadas, relatórios etc.
Além disso, é importante que as partes envolvidas estejam cientes de que os documentos que contenham dados pessoais devem ser utilizados exclusivamente para a finalidade específica do processo em questão e não podem ser divulgados ou compartilhados sem a autorização expressa do titular dos dados ou sem uma base legal para tal.
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Uma resposta
Excelente artigo Vivian. Parabéns!!!