Descubra como o vício em apostas no trabalho se tornou um risco estratégico e como o compliance pode reagir com governança, apoio interno e prevenção eficaz.
Nos últimos anos o Brasil testemunhou uma verdadeira explosão das plataformas de apostas esportivas e cassinos on-line. O que começou como entretenimento digital transformou-se em um setor bilionário, com forte presença na publicidade, no patrocínio de clubes de futebol e na rotina cotidiana de milhões de brasileiros.
Esse fenômeno, impulsionado por tecnologias acessíveis e por uma narrativa de “ganhos fáceis”, tem produzido um efeito colateral ainda pouco discutido dentro das organizações: o vício em apostas, ou ludopatia.
A ludopatia é considerada uma doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e no Brasil é identificada pela CID 10-Z72.6 (mania de jogos e apostas) e pela CID 10-F63.0 (jogo patológico).
Em novembro de 2024, a CPI das Bets foi instalada com o objetivo de investigar os efeitos do jogo online sobre as famílias brasileiras e possíveis conexões com o crime organizado. Em audiência da CPI das Bets, em abril de 2025, o presidente do Banco Central informou que, de janeiro a março deste ano, o fluxo financeiro dos sites de bets foi de 20 a 30 bilhões de reais mensais.
No universo corporativo, a questão ultrapassa os limites da esfera privada. Ela se projeta sobre riscos de integridade, controles internos, reputação e governança, exigindo atenção de áreas de compliance e jurídico. Afinal, quando o comportamento compulsivo impacta a tomada de decisões, o uso de recursos empresariais e a confiança institucional, estamos diante de um risco de conduta — um risco que desafia a governança moderna.

1. Vício em apostas no trabalho como risco de integridade corporativa
O sistema de integridade corporativa, conforme orientam normas como a ISO 37001 (Antissuborno) e a ISO 37301 (Compliance Management), parte da premissa de que comportamentos humanos desviantes são potenciais gatilhos de risco. O vício em apostas, nesse contexto, deixa de ser apenas um tema de saúde mental e passa a representar um vetor de vulnerabilidade ética.
Em um ambiente empresarial, a compulsão por jogos pode se manifestar de diversas formas:
- uso indevido de computadores e redes corporativas para apostas;
- desvio de tempo produtivo;
- empréstimos informais e pressões financeiras entre colegas;
- manipulação de relatórios, adiantamentos e reembolsos;
- e, em casos extremos, fraudes internas.
Sob a ótica do compliance, trata-se de um risco não financeiro, mas de altíssimo potencial de impacto. Ele compromete a fidúcia interna, compromete os controles e mina a credibilidade da cultura organizacional.
Em companhias reguladas — como as dos setores financeiro, energia, telecomunicações e mineração —, qualquer falha de integridade associada ao comportamento de colaboradores pode resultar em multas, sanções reputacionais e perda de confiança junto a investidores e órgãos fiscalizadores.
2. A governança e o dever de vigilância comportamental
As boas práticas de governança corporativa demandam vigilância contínua sobre riscos emergentes de conduta. O vício em apostas se enquadra exatamente nesse campo: é um risco silencioso, progressivo e de difícil identificação, mas que pode se tornar explosivo.
A liderança corporativa tem papel decisivo. Ignorar o tema pode caracterizar falha de diligência e até negligência ética.
Governança responsável não se limita a auditorias financeiras; ela requer a leitura do fator humano como parte da matriz de risco.
Empresas que investem em mecanismos de integridade humanizada — políticas internas claras, comitês de ética atuantes, canais de denúncia acessíveis e programas de apoio psicossocial — demonstram maturidade. Ao reconhecer a ludopatia como vulnerabilidade comportamental e não apenas como desvio disciplinar, a organização se alinha aos princípios de prevenção, detecção e resposta que orientam um sistema de compliance efetivo.
Por outro lado, a omissão pode custar caro.
Além de possíveis danos à reputação, a falta de protocolos de prevenção e acolhimento pode gerar responsabilidade civil corporativa, principalmente se o ambiente de trabalho contribuir, direta ou indiretamente, para o agravamento do quadro (por pressão excessiva por resultados, cultura de competição extrema ou estímulos a jogos internos).

3. A conexão entre ludopatia e cultura organizacional
O vício em apostas floresce em ambientes onde a cultura da performance extrema se sobrepõe à cultura da integridade.
Empresas que premiam riscos desmedidos, metas abusivas e recompensas financeiras imediatas, cria-se terreno fértil para comportamentos compulsivos. O jogo, nesse caso, não é apenas uma fuga individual: é o sintoma de uma cultura corporativa adoecida.
Por isso, o enfrentamento da ludopatia passa pela governança da cultura ética. A gestão de riscos de conduta deve estar integrada aos mecanismos de governança, à política de pessoas e aos indicadores de clima organizacional.
Programas de educação financeira, saúde mental e ética comportamental são instrumentos de compliance tanto quanto controles de auditoria. Afinal, integridade corporativa não se sustenta apenas em políticas escritas, mas na coerência diária entre valores, liderança e práticas internas.
4. O reflexo jurídico: quando o risco chega à Justiça do Trabalho
Quando o vício ultrapassa o âmbito da vida privada e começa a afetar a relação de emprego, ele ingressa no campo do Direito do Trabalho.
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em seu art. 482, alínea “l”, prevê como possibilidade de demissão por justa causa a prática constante de jogos de azar. Entretanto, sempre que se tratar de aplicação de uma justa causa, o contexto deve ser avaliado pormenorizadamente, de forma que a conduta praticada seja, de fato, compatível com o previsto na CLT.
Desta forma, situações relacionadas ao vício em jogos poderão ser enquadradas em outras hipóteses de demissão por justa causa, como, por exemplo:
- Ato de improbidade (alínea “a”): desvio de recursos, manipulação de informações ou fraudes;
- Desídia (alínea “e”): atrasos reiterados, faltas e queda de desempenho;
- Mau procedimento (alínea “b”): atitudes que prejudicam o ambiente de trabalho ou a imagem da empresa.
Contudo, a jurisprudência trabalhista vem sendo cautelosa. Decisões recentes dos Tribunais Regionais do Trabalho têm reforçado dois pontos importantes:
- Proporcionalidade – a empresa precisa comprovar efetivo prejuízo ou quebra de confiança, sob pena de reversão da justa causa.
- Dever de proteção – quando há indícios de ludopatia, enquadrada como doença psiquiátrica, o empregador deve buscar medidas de apoio – tratamento ou acolhimento -, e não apenas punição.
Os Tribunais Regionais têm entendido que a aplicação da justa causa deve respeitar a proporcionalidade e o dever de proteção. Se há indícios de que o empregado sofre de ludopatia diagnosticada, o empregador deve oferecer tratamento ou acolhimento, sob pena de reversão da penalidade.
Há decisões que reconhecem a ludopatia como transtorno psiquiátrico equiparável ao alcoolismo, ensejando afastamento médico e previdenciário.
Outro aspecto de alerta é que, se for demonstrado que o ambiente laboral contribuiu ou agravou a dependência em jogos — por exemplo, pela pressão financeira excessiva, metas abusivas ou cultura de incentivo a apostas corporativas (realização de “bolões” ou jogos de azar internos) — pode haver responsabilidade civil do empregador. Sendo reconhecido o nexo de causalidade ou concausalidade entre a doença e as atividades laborais, poderá haver condenação em:
- Indenização por danos morais (sofrimento psíquico, estigmatização).
- Estabilidade acidentária de 12 meses após a alta previdenciária (art. 118, Lei 8.213/91).
- Custos previdenciários e regressivos junto ao INSS.
A empresa que ignora sinais de adoecimento e apenas pune o empregado sem oferecer suporte pode ser responsabilizada por violação ao dever de proteção e cuidado. Ou seja, o risco jurídico nasce justamente da ausência de política preventiva.

5. Estratégias de compliance para mitigar o vício em apostas no trabalho
A governança eficaz requer respostas estruturadas – e não reativas – diante desse tipo de risco. Algumas medidas práticas incluem:
a) Políticas e controles internos
- Inserir vedações explícitas a apostas durante o expediente ou com recursos da empresa no Código de Ética e Conduta;
- Definir protocolos de uso de rede corporativa e dispositivos eletrônicos;
- Reforçar controles em áreas sensíveis (financeiro, supply chain, controladoria);
- Incorporar análises de integridade comportamental em due diligence e processos seletivos.
b) Cultura e prevenção
- Programas de educação financeira e consciência digital;
- Treinamentos sobre riscos comportamentais e dilemas éticos;
- Campanhas internas que desnormalizem o jogo e valorizem o equilíbrio emocional.
c) Saúde mental e acolhimento
- Criação de Programas de Apoio ao Empregado (EAP) com suporte psicológico;
- Encaminhamento terapêutico em parceria com planos de saúde;
- Comunicação empática e sigilosa, evitando estigmatização.
d) Gestão de crises e reputação
- Protocolos para investigação e resposta a incidentes;
- Comunicação responsável e transparente com stakeholders;
- Alinhamento das ações de gestão de pessoas ao eixo “S” do ESG, reforçando compromisso social e humano.

6. Conclusão: o desafio ético da era das apostas
O vício em apostas é o novo risco invisível das relações corporativas. Ele combina três elementos que desafiam a governança:
- É comportamental, portanto, de difícil detecção;
- É socialmente normalizado, o que reduz a percepção de risco;
- É altamente destrutivo, tanto para o indivíduo quanto para a organização.
Restringir o tratamento do tema à esfera disciplinar ou jurídica equivale a uma abordagem meramente reativa, incapaz de enfrentar suas causas estruturais.
A resposta precisa estar integrada à gestão de riscos de integridade, à cultura ética e à governança responsável.
A prevenção, nesse caso, é parte da própria estratégia de sustentabilidade e reputação corporativa.
O compliance humanizado é aquele que compreende que integridade não se resume a punir desvios, mas também a compreender vulnerabilidades e criar condições para decisões éticas.
O desafio, portanto, não é apenas jurídico: é ético, cultural e institucional.



